Depois de arrancar risos, aplausos e encantar a plateia que lotou o auditório do IAB-RJ para ouvir sua conferência sobre Cidades para Pessoas, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl concedeu a entrevista a seguir.
Com a mesma simplicidade, simpatia e bom humor exibidos na palestra, ele falou de coisas aparentemente óbvias, mas que, esquecidas, têm imposto uma qualidade de vida extremamente precária para muitas cidades do nosso tempo.
No centro de toda a conversa, estão sempre as pessoas.
Os valores humanos, a escala humana.
São eles que norteiam todos os seus projetos de arquitetura e urbanismo e que, segundo Gehl, precisam ser resgatados pelos formuladores e gestores públicos nas cidades do século 21.
– O crescimento do Rio de Janeiro se deu num modelo rodoviarista com ênfase nos carros particulares. Nesse contexto, como se pode pensar uma cidade para pessoas?
– Na minha apresentação, falei de um bom número de cidades que mudaram esse padrão. No meu livro Novos espaços urbanos, falamos de três tipos de cidade: a cidade tradicional, a cidade invadida e a cidade reconquistada.
A cidade tradicional era a que todos tínhamos antes de 1960, mais ou menos construída em função da vida das pessoas.
Aí veio a invasão dos automóveis e começamos a construir as cidades de maneira que os carros pudessem ser felizes.
E então passamos a ter um número crescente de cidades reconquistadas, aquelas em que alguém – pode ser o prefeito, como em Curitiba, ou, como em Bogotá, Estrasburgo ou Copenhague, pode ser um arquiteto ou um grupo político, que se levanta e diz: “ei, servir aos carros não pode ser o propósito da cidade.
Precisamos resgatar outros valores da cidade, valores humanos”. Essas cidades reconquistadas, como as chamamos, são então caracterizadas pela busca de um bom equilíbrio entre três funções: um lugar de encontro para as pessoas, um lugar de mercado de bens e serviços e um lugar de mobilidade, onde se pode conectar diferentes espaços.
O que ocorreu com a chegada dos carros foi que a função mobilidade passou a ser preponderante sobre as demais.
Depois de um tempo a cidade ganhou uma feição tal que parecia que a razão de sua existência era apenas se mover e não o encontro entre pessoas e as trocas comerciais.
O mercado foi empurrado para dentro, mas o encontro foi cancelado e as pessoas, separadas umas das outras.
Essas cidades reconquistadas estão tentando reestabelecer esse equilíbrio perdido, tentando assegurar que haja espaço suficiente para as pessoas se encontrarem, para caminharem e ter vida comunitária, para que a vida social tenha condições de existir.
E nesse processo, descobrimos, através de pesquisa, que o ambiente urbano edificado tem um efeito enorme sobre o que as pessoas podem ou não podem fazer na cidade.
Se voltarmos aos anos 60 quando os modernistas chegaram, ninguém sabia até então que a maneira como construímos as cidades tem influência sobre nosso estilo de vida ou sobre nossas condições de vida.
Não existia pesquisa sobre isso. Então, eles achavam que a vida seguiria igual, business as usual, com
prédios e um monte de carros entre eles.
O que se descobriu, é claro, é que se você constrói cidades assim, você mata a vida.
Jane Jacobs foi a primeira a chamar atenção para isso com seu livro Morte e vida das grandes cidades americanas.
Hoje faz 51 anos que ela escreveu esse livro revolucionário, e de lá para cá um número crescente de pessoas começou a fazer essa relação do que acontece com a cidade se você preenche todos os seus espaços com automóveis.
Hoje já sabemos muito sobre isso e sobre o que fazer para evitar que a vida seja extinta.
O que as cidades com os mesmos problemas que o Rio de Janeiro estão fazendo é repensar esse modelo e buscar um equilíbrio nas funções da cidade, abrindo mais espaços para as pessoas caminharem e se encontrarem.
Isso é bom para a saúde e para a vida pública em todas as suas conotações. Poder andar, sentar, olhar, conversar e compartilhar no espaço público é extremamente importante para a vida humana.
É uma questão de reajustar o equilíbrio como estão fazendo essas cidades que eu cito no livro: Barcelona, Lyon, Curitiba, Copenhague, Estrasburgo, Melbourne, Portland, Freiburg e Córdoba, que fizeram muitas coisas interessantes. Eu não conhecia, quando o escrevi, o exemplo de Bogotá, se não o teria incluído também. É possível mudar esse modelo com políticas públicas quando se pensa que o propósito da cidade é fazer as pessoas – e não os carros – felizes.
– O Rio segue se expandindo horizontalmente com densidade populacional baixa. Quais as consequências disso e o que deve ser feito na busca de uma cidade mais sustentável?
– Toda essa expansão horizontal é um produto da gasolina barata. E gasolina barata é coisa do passado, não voltará mais. Além disso, ficaremos sem ela nos próximos 20 ou 30 anos.
Portanto, toda a base dessa expansão está se extinguindo e isso nos coloca um desafio muito sério.
A forma de se criar novos assentamentos hoje é construí-los como contas de um colar ao longo da linha dos trens ou bondes, de maneira que haja cidades passíveis de serem percorridas a pé com estações entre elas.
É assim que se faz planejamento urbano moderno nos dias de hoje. Acredito que Melbourne seja um exemplo muito interessante: lá eles dobraram a população de três para seis milhões de habitantes, adensando os subúrbios, ou seja, simplesmente construindo, ao longo da linha do trem, prédios de cinco ou seis andares cercados de bulevares. Eles se deram conta de que teriam que derrubar 20% das casas, mas poderiam deixar 80% intocadas.
Dessa forma, as pessoas puderam ter acesso a serviços muito melhores já disponíveis nos bairros, como clínicas, escolas, farmácias e transporte público, em vez de terem de ir para um lugar novo e mais distante onde não havia nada.
Essa é uma boa forma de se resgatar os subúrbios, dando-lhes vida nova a partir do adensamento, não com arranha-céus, mas com prédios baixos de até seis andares.
O arquiteto Rob Adams foi o homem milagroso que transformou Melbourne.
Ele conseguiu enquadrar seis prefeitos e fez uma coisa fantástica. Atualmente, trabalha no nosso escritório como consultor sênior, nos ajudando no projeto de Nova Iorque e também no de Moscou.
– Como se pode transformar um espaço público visto como “de ninguém” num lugar “de todos”?
– Se um espaço público é visto como sendo “de ninguém”, se ele não é apropriado pela população, é porque não é um bom espaço.
A partir da minha experiência, a minha opinião é que quando se aplicam os critérios de qualidade para um bom espaço público, as pessoas o usam.
Eu conheço diversos exemplos ao redor do mundo de espaços que são ignorados pelas pessoas.
Nesse meu novo livro – Cidades para pessoas –, apresentamos 12 critérios de qualidade para um bom espaço público.
Todos os bons espaços públicos no mundo preenchem esses requisitos.
Esses critérios são apresentados no livro no capítulo sobre “ferramentas”.
É interessante que o critério “aparência” não é o principal deles. Muitos arquitetos acham que isso basta: ser bonito, com boas lâmpadas, materiais e equipamentos.
Mas isso não é suficiente para que um espaço público seja bom. Nele é preciso também que as pessoas sejam protegidas do tráfego, do barulho, da violência, das intempéries; que seja um bom lugar para caminhar, para estar, para sentar, para ver e ouvir; ele deve prover oportunidade para as pessoas se exercitarem, brincarem e usufruírem do tempo, ter uma boa escala humana e por fim, deve ser um espaço bem desenhado.
Se você se ativer apenas ao critério da aparência, normalmente não funciona.
Mas, ao contrário, geralmente funciona se os demais critérios forem respeitados e esse não. Se você puder preencher todos os critérios, aí, é claro, terá o melhor lugar do mundo, cheio de gente.
Um ponto importante a se observar é que ele não deve oferecer espaço demais.
Nesse caso, menos é mais. É como numa festa, se ela tiver pouca gente num espaço grande, não fica boa.
Coloque todo mundo na cozinha, e você terá uma boa festa. Também não a faça em dois andares, não funciona.
Na dúvida, deixe uns metros de fora. É melhor ter espaços menores e mais aconchegantes.
Nos últimos 50 anos, nós arquitetos ficamos completamente confusos sobre o que seja uma boa escala humana. Sabemos tudo sobre a escala para 60 km por hora, ou para estacionamentos.
E também porque construímos esses prédios altos, achamos que eles devem ficar mais distantes uns dos outros. Isso é uma confusão.
O olho humano é o mesmo.
Por isso também incluímos um outro capítulo no livro sobre os sentidos humanos e o que significa uma boa escala humana. O livro vai sair em português pela Editora Perspectiva e agora estamos negociando a data do lançamento. Eu quero 2012 e eles, 2013. Vamos ver.
– Seu escritório em Copenhague tem uma unidade de pesquisa. Qual o seu objetivo, que ganhos traz para a sua prática e como ela funciona?
– O pano de fundo para isso é que eu venho do meio acadêmico.
Eu fui professor universitário de tempo integral durante 40 anos.
E só quando eu estava prestes a me aposentar é que abri minha empresa.
Isso foi em 2000, quando eu tinha 63 anos.
Para mim era lógico que era preciso fazer pesquisa o tempo todo sobre o que eu estava fazendo.
Quando eu estava na universidade, eu podia confiar muito no meu trabalho por causa da pesquisa, então quando montei a empresa, entendi que era importante criar uma unidade de pesquisa no escritório que embasasse os projetos.
Fomos capazes de fazer isso porque existem excelentes fundações que acreditam que planejamento urbano humanista é muito importante para a humanidade.
Elas me deram muito dinheiro quando eu estava na universidade e, quando eu saí de lá, eles continuaram me apoiando. Este livro Cidades para pessoas foi financiado por elas, assim como outros que estão saindo.
Normalmente é difícil se conseguir isso com o orçamento do próprio escritório.
O tipo de trabalho que fazemos não é muito lucrativo, ele basicamente se paga, porque trabalhamos com base em muitos pequenos projetos ao redor do mundo, que são custosos.
Não pegamos grandes contratos, como hospitais, ou coisas do gênero, de forma que nosso lucro é restrito.
Nos divertimos muito, viajamos muito pelo mundo e fazemos o bem. Achamos que isso nos basta.
Mas nossa operação não é capaz de pagar nossas pesquisas.
Dependemos das fundações para isso.
Elas entendem que nossos conselhos são tão importantes que continuam nos financiando. Nós nunca fazemos projetos de design. Fazemos consultoria e aconselhamento.
Acredito que o mundo está cheio de excelentes arquitetos, designers, paisagistas e projetistas, mas faltam bons programas sobre o que eles devem fazer.
É aí que entra nosso trabalho.
Em programas estratégicos.
Em ideias. E a pesquisa tem papel importante nisso.