O autor de "Born liars", livro sobre o papel da mentira, afirma que obstáculos podem ser fundamentais para trabalhos de qualidade
Jack White, ex-líder do White Stripes, gosta de dificultar as coisas
para si mesmo. Usa guitarras baratas, que não ficam em forma ou
afinadas.
Quando toca, posiciona seus instrumentos de maneira
deliberadamente inconveniente, fazendo com que mudar da guitarra para o
órgão durante uma música envolva um giro louco pelo palco. Por quê?
Porque ele foge do que descreve como uma doença que atinge todo artista:
“a facilidade de uso”.
Quando fazer música torna-se fácil demais, diz
White, fica mais difícil fazê-la soar bem.
É um pensamento estranho. Por que alguém tornaria seu trabalho mais difícil do que já é? Sabemos, porém, que a dificuldade traz benefícios inesperados.
Em 1966, logo depois que os Beatles concluíram Rubber soul, Paul McCartney avaliou a possibilidade de ir para os Estados Unidos
para gravar o próximo álbum da banda.
Os equipamentos dos estúdios
americanos eram mais avançados do que qualquer coisa na Grã-Bretanha, o
que levara os grandes rivais dos Beatles, os Rolling Stones, a produzir seu álbum Aftermath
em Los Angeles. McCartney descobriu que as cláusulas contratuais da EMI
tornavam caro demais seguir o mesmo caminho, e os Beatles tiveram de se
virar com a primitiva tecnologia do estúdio Abbey Road. Sorte nossa.
Nos dois anos seguintes, eles fizeram seu trabalho mais revolucionário,
transformando o estúdio de gravação num instrumento mágico.
Precisamente porque trabalhavam com máquinas antigas, George Martin e
sua equipe de engenheiros foram forçados a colocar em prática cada grama
de sua genialidade para solucionar os problemas postos por Lennon e
McCartney. Canções como “Tomorrow never knows”, “Strawberry fields
forever” e “A day in the life” traziam efeitos que maravilhavam os
colegas americanos de Martin.
Às vezes, é apenas quando a dificuldade é removida que nós percebemos o
que ela nos proporcionava. Por mais de duas décadas, a partir dos anos
1960, o poeta Ted Hughes fez parte do júri de uma competição anual de
poesia para crianças de escolas britânicas.
Durante os anos 1980, ele
notou um crescente número de poemas longos entre os inscritos, com
alguns chegando a 70 ou 80 páginas. Esses poemas eram verbalmente
inventivos e fluentes, mas também “estranhamente chatos”. Depois de
investigar, Hughes descobriu que eles estavam sendo escritos em
computadores.
Você pode pensar que qualquer ferramenta que permita um escritor colocar palavras numa página seria uma vantagem.
Mas pode haver um custo
para essa facilidade. Numa entrevista para a Paris Review,
Hughes especulou que, quando uma pessoa coloca uma caneta sobre o papel,
“você encontra a terrível resistência do que aconteceu em seu primeiro
ano, quando você não conseguia escrever nada”. Conforme o cérebro tenta
obrigar a instável mão a cumprir sua tarefa, a tensão entre os dois
resulta numa expressão psicologicamente mais densa. Remova essa
resistência, e você estará mais inclinado a produzir uma enrolação de 70
páginas.
Há inclusive uma base para a hipótese de Hughes vinda da
neurociência moderna: um estudo realizado pela professora Virginia
Berninger, da Universidade de Washington, identificou que escrever à mão
ativa mais o cérebro do que a escrita no teclado.
Nosso cérebro responde melhor à dificuldade do que nós imaginamos.
Nosso cérebro responde melhor à dificuldade do que nós imaginamos.
Nas
escolas, tanto professores como alunos assumem que, se um conceito foi
fácil de aprender, a lição foi bem-sucedida.
Mas inúmeros estudos
descobriram que, quando o material dado em sala de aula se torna mais
difícil de absorver, os alunos retêm mais no longo prazo e o compreendem
num nível mais profundo. Robert Bjork, da Universidade da Califórnia,
cunhou a expressão “dificuldades desejáveis” para descrever a noção
contraintuitiva de que deveríamos tornar o aprendizado mais difícil por
meio de, por exemplo, aulas mais espaçadas entre elas para que os
estudantes tenham de se esforçar mais para se lembrar do que aprenderam
na última vez.
Cientistas da Universidade de Amsterdã fizeram uma série de
experimentos para investigar como obstáculos afetam nosso processo de
pensamento.
Num deles, as pessoas tinham de resolver exercícios com
anagramas ao mesmo tempo que, como um obstáculo a sua concentração,
números aleatórios eram lidos em voz alta. Comparadas com aqueles que
cumpriram a mesma tarefa sem essa distração, essas pessoas demonstraram
uma agilidade cognitiva maior: mais probabilidade de fazer saltos de
associação e conexões incomuns.
Os pesquisadores também descobriram que,
quando as pessoas são forçadas a lidar com obstáculos inesperados, elas
reagem aumentando seu “ângulo de percepção” – dar, mentalmente, um
passo para trás para ver a situação como um todo.
Quando você encontra
seu caminho para o trabalho bloqueado por uma obra, precisa imaginar um
mapa da cidade em sua cabeça.
Nós tendemos a igualar felicidade a liberdade, mas, como o psicoterapeuta e escritor Adam Philips observou, sem obstáculos a nossos desejos é mais difícil saber o que queremos ou para onde vamos.
Um
obstáculo comum é a falta de dinheiro. As pessoas assumem que mais
dinheiro as fará mais felizes. Mas economistas que estudam a relação
entre dinheiro e felicidade descobriram, consistentemente, que, a partir
de certa renda, os dois não estão seguramente correlatos.
Na verdade, a
facilidade de aquisição é o problema. Quando o Boston College quis
conhecer melhor seus potenciais doadores, pediu ao psicólogo Robert
Kenny que investigasse a mentalidade dos super-ricos. Ele pesquisou 165
famílias, a maioria com um patrimônio líquido de US$ 25 milhões ou mais.
Descobriu que muitos deles estavam perdidos por causa das infinitas
opções que seu dinheiro lhes apresentava. Eles achavam difícil saber o
que desejar, o que criava uma espécie de confusão existencial. Um deles
disse: “Quando você chega a um ponto em que pode comprar tanta coisa, o
que você vai fazer?”.
A internet
faz de todos nós bilionários da informação, e os arquitetos de nossas
experiências on-line estão percebendo a necessidade de tornar as coisas
criativamente difíceis.
O sucesso do Twitter baseia-se na percepção de
que, num meio com espaço infinito para expressão pessoal, o mais
interessante a fazer é nos restringir a 140 caracteres.
O serviço de
música This Is My Jam ajuda as pessoas a navegar pelas dezenas de
milhões de faixas disponíveis instantaneamente pelo Spotify e pelo
iTunes. Os usuários escolhem sua música favorita da semana e a
compartilham com os outros.
Eles só podem escolher uma. O serviço foi
lançado apenas em 2012, mas até setembro 650 mil jams haviam sido
escolhidas. Seu cofundador, Matt Ogle, explica sua razão de ser: “Numa
era de escolha sem fim, nós sentimos falta de uma forma de dizer ‘Esta. É
esta que você deveria escutar’”.
Comparada com centenas de anos atrás, nossa vida é menos restrita por limites sociais e físicos.
A tecnologia
cortou grande parte da labuta da vida, e nós temos hoje mais liberdade
do que nunca: podemos vestir o que queremos, dormir com quem quisermos
(se a pessoa em questão quiser dormir conosco) e nos comunicar com
centenas de amigos ao mesmo tempo a partir do clique de um mouse. Poucos
de nós desejamos voltar no tempo, mas talvez precisemos nos lembrar
como podem ser úteis os obstáculos corretos.
Às vezes, o melhor caminho
para a satisfação pessoal é aquele de mais resistência.