26 janeiro 2013

O lado bom da dificuldade


O autor de "Born liars", livro sobre o papel da mentira, afirma que obstáculos podem ser fundamentais para trabalhos de qualidade


Jack White, ex-líder do White Stripes, gosta de dificultar as coisas para si mesmo. Usa guitarras baratas, que não ficam em forma ou afinadas. 

Quando toca, posiciona seus instrumentos de maneira deliberadamente inconveniente, fazendo com que mudar da guitarra para o órgão durante uma música envolva um giro louco pelo palco. Por quê? Porque ele foge do que descreve como uma doença que atinge todo artista: “a facilidade de uso”. 

Quando fazer música torna-se fácil demais, diz White, fica mais difícil fazê-la soar bem.


É um pensamento estranho. Por que alguém tornaria seu trabalho mais difícil do que já é? Sabemos, porém, que a dificuldade traz benefícios inesperados. 

Em 1966, logo depois que os Beatles concluíram Rubber soul, Paul McCartney avaliou a possibilidade de ir para os Estados Unidos para gravar o próximo álbum da banda. 

Os equipamentos dos estúdios americanos eram mais avançados do que qualquer coisa na Grã-Bretanha, o que levara os grandes rivais dos Beatles, os Rolling Stones, a produzir seu álbum Aftermath em Los Angeles. McCartney descobriu que as cláusulas contratuais da EMI tornavam caro demais seguir o mesmo caminho, e os Beatles tiveram de se virar com a primitiva tecnologia do estúdio Abbey Road. Sorte nossa. 

Nos dois anos seguintes, eles fizeram seu trabalho mais revolucionário, transformando o estúdio de gravação num instrumento mágico.
ESTÍMULO John Lennon, George Harrison e Paul McCartney em 1968. A precariedade dos estúdios de Abbey Road serviu como estímulo à criação de obras- primas dos Beatles (Foto: Keystone Features/Getty Images)

Precisamente porque trabalhavam com máquinas antigas, George Martin e sua equipe de engenheiros foram forçados a colocar em prática cada grama de sua genialidade para solucionar os problemas postos por Lennon e McCartney. Canções como “Tomorrow never knows”, “Strawberry fields forever” e “A day in the life” traziam efeitos que maravilhavam os colegas americanos de Martin.  

Às vezes, é apenas quando a dificuldade é removida que nós percebemos o que ela nos proporcionava. Por mais de duas décadas, a partir dos anos 1960, o poeta Ted Hughes fez parte do júri de uma competição anual de poesia para crianças de escolas britânicas. 

Durante os anos 1980, ele notou um crescente número de poemas longos entre os inscritos, com alguns chegando a 70 ou 80 páginas. Esses poemas eram verbalmente inventivos e fluentes, mas também “estranhamente chatos”. Depois de investigar, Hughes descobriu que eles estavam sendo escritos em computadores.


Você pode pensar que qualquer ferramenta que permita um escritor colocar palavras numa página seria uma vantagem. 

Mas pode haver um custo para essa facilidade. Numa entrevista para a Paris Review, Hughes especulou que, quando uma pessoa coloca uma caneta sobre o papel, “você encontra a terrível resistência do que aconteceu em seu primeiro ano, quando você não conseguia escrever nada”. Conforme o cérebro tenta obrigar a instável mão a cumprir sua tarefa, a tensão entre os dois resulta numa expressão psicologicamente mais densa. Remova essa resistência, e você estará mais inclinado a produzir uma enrolação de 70 páginas. 

Há inclusive uma base para a hipótese de Hughes vinda da neurociência moderna: um estudo realizado pela professora Virginia Berninger, da Universidade de Washington, identificou que escrever à mão ativa mais o cérebro do que a escrita no teclado.

Nosso cérebro responde melhor à dificuldade do que nós imaginamos. 

Nas escolas, tanto professores como alunos assumem que, se um conceito foi fácil de aprender, a lição foi bem-sucedida. 

Mas inúmeros estudos descobriram que, quando o material dado em sala de aula se torna mais difícil de absorver, os alunos retêm mais no longo prazo e o compreendem num nível mais profundo. Robert Bjork, da Universidade da Califórnia, cunhou a expressão “dificuldades desejáveis” para descrever a noção contraintuitiva de que deveríamos tornar o aprendizado mais difícil por meio de, por exemplo, aulas mais espaçadas entre elas para que os estudantes tenham de se esforçar mais para se lembrar do que aprenderam na última vez.

"Nosso cérebro responde melhor à dificuldade do que imaginamos. Se a lição é difícil, os alunos a retêm mais no longo prazo" 
 
Cientistas da Universidade de Amsterdã fizeram uma série de experimentos para investigar como obstáculos afetam nosso processo de pensamento. 

Num deles, as pessoas tinham de resolver exercícios com anagramas ao mesmo tempo que, como um obstáculo a sua concentração, números aleatórios eram lidos em voz alta. Comparadas com aqueles que cumpriram a mesma tarefa sem essa distração, essas pessoas demonstraram uma agilidade cognitiva maior: mais probabilidade de fazer saltos de associação e conexões incomuns. 

Os pesquisadores também descobriram que, quando as pessoas são forçadas a lidar com obstáculos inesperados, elas reagem aumentando seu “ângulo de percepção” – dar, mentalmente, um passo para trás para ver a situação como um todo. 

Quando você encontra seu caminho para o trabalho bloqueado por uma obra, precisa imaginar um mapa da cidade em sua cabeça.


Nós tendemos a igualar felicidade a liberdade, mas, como o psicoterapeuta e escritor Adam Philips observou, sem obstáculos a nossos desejos é mais difícil saber o que queremos ou para onde vamos. 

Um obstáculo comum é a falta de dinheiro. As pessoas assumem que mais dinheiro as fará mais felizes. Mas economistas que estudam a relação entre dinheiro e felicidade descobriram, consistentemente, que, a partir de certa renda, os dois não estão seguramente correlatos. 

Na verdade, a facilidade de aquisição é o problema. Quando o Boston College quis conhecer melhor seus potenciais doadores, pediu ao psicólogo Robert Kenny que investigasse a mentalidade dos super-ricos. Ele pesquisou 165 famílias, a maioria com um patrimônio líquido de US$ 25 milhões ou mais. 

Descobriu que muitos deles estavam perdidos por causa das infinitas opções que seu dinheiro lhes apresentava. Eles achavam difícil saber o que desejar, o que criava uma espécie de confusão existencial. Um deles disse: “Quando você chega a um ponto em que pode comprar tanta coisa, o que você vai fazer?”.
A MENSAGEM 764 (Foto: reprodução/Revista ÉPOCA)
A internet faz de todos nós bilionários da informação, e os arquitetos de nossas experiências on-line estão percebendo a necessidade de tornar as coisas criativamente difíceis. 

O sucesso do Twitter baseia-se na percepção de que, num meio com espaço infinito para expressão pessoal, o mais interessante a fazer é nos restringir a 140 caracteres. 

O serviço de música This Is My Jam ajuda as pessoas a navegar pelas dezenas de milhões de faixas disponíveis instantaneamente pelo Spotify e pelo iTunes. Os usuários escolhem sua música favorita da semana e a compartilham com os outros. 

Eles só podem escolher uma. O serviço foi lançado apenas em 2012, mas até setembro 650 mil jams haviam sido escolhidas. Seu cofundador, Matt Ogle, explica sua razão de ser: “Numa era de escolha sem fim, nós sentimos falta de uma forma de dizer ‘Esta. É esta que você deveria escutar’”.
Comparada com centenas de anos atrás, nossa vida é menos restrita por limites sociais e físicos.

 A tecnologia cortou grande parte da labuta da vida, e nós temos hoje mais liberdade do que nunca: podemos vestir o que queremos, dormir com quem quisermos (se a pessoa em questão quiser dormir conosco) e nos comunicar com centenas de amigos ao mesmo tempo a partir do clique de um mouse. Poucos de nós desejamos voltar no tempo, mas talvez precisemos nos lembrar como podem ser úteis os obstáculos corretos. 

Às vezes, o melhor caminho para a satisfação pessoal é aquele de mais resistência. 

Arquivo INFOTRANSP