As bicicletas viraram o meio de transporte oficial de muitos brasileiros nas grandes cidades. É seguro disputar espaço com os carros nas ruas?
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O arquiteto Felippe César Santana, de 26 anos, parece ter uma aptidão
peculiar para atrair ofensas.
Ele costuma ser xingado rotineiramente por
gente que nem sequer o conhece.
O motivo: Santana usa bicicleta para
andar pela cidade onde mora, Aracaju. “Entro na frente se o carro me
pressionar”, afirma. “É a única maneira de me fazer visível e conquistar
espaço.
Os motoristas não respeitam os ciclistas.” Do outro lado dessa
disputa estão motoristas como Jair Ferreira dos Santos, de 51 anos.
Ele
atropelou uma bicicleta enquanto dirigia um ônibus nas ruas de São
Paulo.
O ciclista sobreviveu, diz Santos, mas o acidente ocorrido há 20
anos serviu como alerta. “Os ciclistas são espaçosos, andam na faixa de
ônibus e na frente dos carros.
Não respeitam o espaço disponível para
eles e atrapalham os motoristas.
A situação piora a cada ano”, afirma
Santos, hoje diretor do Sindicato dos Motoristas.
Conflitos entre ciclistas e motoristas, como os relatados por Santana e
Santos, são cada vez mais frequentes nas grandes cidades.
A frota de
bicicletas no país supera a de carros, segundo a Associação Brasileira
dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e
Similares. São 65 milhões de bicicletas e 41,5 milhões de automóveis.
Dos deslocamentos diários, 7% são feitos por bicicletas, número que
coloca o Brasil no ranking dos dez países em que mais se usa bicicleta
no mundo, de acordo com Claudio Oliveira da Silva, arquiteto do
Ministério das Cidades.
Esses números refletem uma nova realidade do
trânsito.
As bicicletas deixaram de ser usadas apenas em momentos de
lazer e se tornaram uma opção de transporte para cidadãos cansados de
perder horas em congestionamentos.
Também competem por espaço com outros
passageiros no transporte público lotado.
Em São Paulo, a maior metrópole do país, a bicicleta é o segundo meio
de transporte mais rápido.
Num desafio promovido no horário de pico, às
18 horas, um ciclista levou 22 minutos e 50 segundos para percorrer 10
quilômetros pelas ruas. Perdeu para o helicóptero por apenas dois
minutos.
Quem depende do transporte público também encara uma disputa
diária: por espaço.
O metrô paulistano bateu recorde histórico de
passageiros: 5 milhões numa quinta-feira de setembro.
Nas linhas de
ônibus, a situação não é diferente.
O número de passageiros aumentou em
10% no último ano.
Um estudo recente sugere que 80% dos entrevistados
reclamam de demora, sujeira e superlotação.
Diante desse cenário, é
compreensível que 73% dos paulistanos digam que gostariam de promover a
bicicleta a seu meio de transporte oficial. Só não o fazem por uma
razão: sentem que falta segurança.
Em 2010, cerca de 1.500 ciclistas morreram em acidentes de trânsito no Brasil.
O número, apresentado de forma isolada, reforça a convicção
daqueles que acreditam que as grandes cidades não estão prontas para as
bicicletas. “Os ciclistas se arriscam ao ocupar um espaço físico hoje
escasso”, diz Getúlio Hanashiro, ex-secretário de Transportes de São
Paulo. “Nas grandes cidades, temos de investir no transporte público
para tirar os carros da rua.
Assim teremos espaço para as bicicletas.”
Esse ponto de vista gradualista é contestado por quem estuda o assunto
em profundidade – e tampouco encontra amparo nos números.
Em 2007,
morreram 2.111 s ciclistas no país, 29% a mais que em 2010.
A queda do
número de óbitos coincidiu com o aumento do número de ciclistas e com a
implantação do programa Bicicleta Brasil, que permitiu a criação de
ciclovias em vários municípios brasileiros. Essa estatística confirma o
que o pesquisador de saúde pública Peter Jacobson, da Universidade de
Michigan, detectou em 2003.
Ele reuniu dados de várias cidades do mundo e
confirmou que o número de acidentes envolvendo bicicletas era
inversamente proporcional ao número de ciclistas.
Ou seja, a quantidade
de acidentes diminuía à medida que aumentava o número de cidadãos
pedalando. É o que os cicloativistas chamam de “segurança na
quantidade”.
Em São Paulo, de acordo com o Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, os dados de acidentes ainda não permitem a mesma conclusão.
Em São Paulo, de acordo com o Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, os dados de acidentes ainda não permitem a mesma conclusão.
Ao longo de 2011, conforme o HC, foram registrados 11
internações e 58 atendimentos de ciclistas. Neste ano, já foram
atendidos 40 ciclistas e 15 foram internados.
Na dúvida, cada um
reafirma seu ponto de vista. “A presença dos ciclistas é um instrumento
de mudança”, afirma o urbanista Pedro Cláudio Cunha, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Ela produz pressão para
investir na estrutura das vias públicas e educar as pessoas.”
A administradora de empresas Célia Moraes, de 35 anos, arrumou coragem para enfrentar as ruas sobre duas rodas há cinco anos. Era um dia de congestionamento em São Paulo, ela estava parada no trânsito quando viu passar uma ciclista. “Ela parecia tão contente”, diz. Hoje, Célia percorre em meia hora os 10 quilômetros que separam sua casa do trabalho. De carro, levaria o dobro do tempo.
A administradora de empresas Célia Moraes, de 35 anos, arrumou coragem para enfrentar as ruas sobre duas rodas há cinco anos. Era um dia de congestionamento em São Paulo, ela estava parada no trânsito quando viu passar uma ciclista. “Ela parecia tão contente”, diz. Hoje, Célia percorre em meia hora os 10 quilômetros que separam sua casa do trabalho. De carro, levaria o dobro do tempo.
“Quando começo a
trabalhar, já fiz parte de meu exercício diário”, diz. “A bicicleta me
libertou da academia. No trabalho, todo mundo fica com inveja.” Na tarde
da primeira terça-feira de setembro, no entanto, não houve quem
desejasse estar em sua pele. Célia levou uma fechada, caiu no asfalto e o
motorista fugiu.
As ruas parecem tão inóspitas para os ciclistas porque não foram
planejadas para eles, mas para os automóveis. Entre o fim do século XIX e
o começo do século XX, os carros pareciam a condução do futuro.
Os
urbanistas sentiram-se à vontade para expandir os limites das cidades e
descentralizar os centros comerciais.
O modelo, adotado em países como
Brasil e Estados Unidos, exige que as longas distâncias sejam cumpridas
pelos carros, que até hoje dominam as ruas.
Na Europa, as cidades são
centralizadas e as distâncias a percorrer menores. É o cenário ideal
para usar a bicicleta. Sua popularidade levou à construção de ciclovias,
que encorajaram outros a pedalar.
As cidades brasileiras estão
começando a investir nesse rumo. Em setembro, começou a funcionar em
Porto Alegre um projeto de aluguel de bicicletas, parceria da prefeitura
com uma empresa. Um projeto semelhante já funciona em São Paulo desde
maio.
No Rio de Janeiro, o aluguel das “laranjinhas”, as bicicletas da
prefeitura, soma 100 mil usuários cadastrados.
Em Pernambuco, o governo
do Estado planeja aumentar em 100 quilômetros a ciclovia da cidade, hoje
com 74 quilômetros. Mesmo assim, a segurança não é total.
O estudante de engenharia Lucas Rosolini, de 20 anos, mora em Santos, litoral de São Paulo. Ele diz que leva sustos quando tem de sair da ciclovia, porque os automóveis investem para cima dele, na tentativa de ultrapassá-lo. “A ciclovia deveria dar a volta na cidade toda. Ela termina em pontos onde é muito perigoso disputar espaço com carros e ônibus”, diz.
A impressão de Rosolini encontra respaldo nas
estatísticas. Nas colisões em que o carro está a 30 quilômetros por
hora, a probabilidade de morrer é de cerca de 10%.
A 70 quilômetros por
hora, a morte é praticamente certa.
No Brasil, os ciclistas mais
protegidos são os cariocas.
O Rio de Janeiro tem a maior extensão de
ciclovias do país, 290 quilômetros – ainda assim, pouco mais da metade
de Nova York.
Nessa equação, cada um precisa fazer sua parte.
Nessa equação, cada um precisa fazer sua parte.
Os motoristas devem
zelar pelos ciclistas, como prevê o Código Nacional de Trânsito, porque
os veículos maiores devem dar prioridade aos menores.
Os ciclistas
também têm obrigações. “Eles são veículos e precisam respeitar o Código
de Trânsito”, afirma Marcelo José Araújo, consultor da Federação
Nacional das Associações de Detrans.
O analista de sistemas uruguaio
José Antonio Martinez, de 61 anos, diz que o respeito é sua receita para
andar com tranquilidade pelas ruas de Porto Alegre.
Ele diz que cumpre
com rigor as regras de trânsito e, por isso, não se sente ameaçado pelos
motoristas. Martinez diz que só ganhou com a rotina sobre duas rodas.
“Ouço os passarinhos durante o caminho para o trabalho. Estou mais em
paz.”