02 janeiro 2013

Malucos ou visionários?

As bicicletas viraram o meio de transporte oficial de muitos brasileiros nas grandes cidades. É seguro disputar espaço com os carros nas ruas?

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APERTO O arquiteto Felippe César Santana,  de 26 anos, pedala nas ruas de Aracaju. “Os motoristas  não respeitam  os ciclistas”, afirma  (Foto: Márcio Garcez/ÉPOCA)
 
O arquiteto Felippe César Santana, de 26 anos, parece ter uma aptidão peculiar para atrair ofensas. 

Ele costuma ser xingado rotineiramente por gente que nem sequer o conhece. 

O motivo: Santana usa bicicleta para andar pela cidade onde mora, Aracaju. “Entro na frente se o carro me pressionar”, afirma. “É a única maneira de me fazer visível e conquistar espaço. 

Os motoristas não respeitam os ciclistas.” Do outro lado dessa disputa estão motoristas como Jair Ferreira dos Santos, de 51 anos. 

Ele atropelou uma bicicleta enquanto dirigia um ônibus nas ruas de São Paulo. 

O ciclista sobreviveu, diz Santos, mas o acidente ocorrido há 20 anos serviu como alerta. “Os ciclistas são espaçosos, andam na faixa de ônibus e na frente dos carros. 

Não respeitam o espaço disponível para eles e atrapalham os motoristas. 

A situação piora a cada ano”, afirma Santos, hoje diretor do Sindicato dos Motoristas.

Conflitos entre ciclistas e motoristas, como os relatados por Santana e Santos, são cada vez mais frequentes nas grandes cidades. 

A frota de bicicletas no país supera a de carros, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares. São 65 milhões de bicicletas e 41,5 milhões de automóveis. 

Dos deslocamentos diários, 7% são feitos por bicicletas, número que coloca o Brasil no ranking dos dez países em que mais se usa bicicleta no mundo, de acordo com Claudio Oliveira da Silva, arquiteto do Ministério das Cidades. 

Esses números refletem uma nova realidade do trânsito. 

As bicicletas deixaram de ser usadas apenas em momentos de lazer e se tornaram uma opção de transporte para cidadãos cansados de perder horas em congestionamentos. 

Também competem por espaço com outros passageiros no transporte público lotado.

FIM DA LINHA O estudante Lucas Rosolini, na ciclovia de Santos, São Paulo. “Ela termina  em pontos em que  é muito perigoso disputar espaço com carros e ônibus”, diz  (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
 
Em São Paulo, a maior metrópole do país, a bicicleta é o segundo meio de transporte mais rápido. 

Num desafio promovido no horário de pico, às 18 horas, um ciclista levou 22 minutos e 50 segundos para percorrer 10 quilômetros pelas ruas. Perdeu para o helicóptero por apenas dois minutos. 

Quem depende do transporte público também encara uma disputa diária: por espaço. 

O metrô paulistano bateu recorde histórico de passageiros: 5 milhões numa quinta-feira de setembro. 

Nas linhas de ônibus, a situação não é diferente. 

O número de passageiros aumentou em 10% no último ano. 

Um estudo recente sugere que 80% dos entrevistados reclamam de demora, sujeira e superlotação. 

Diante desse cenário, é compreensível que 73% dos paulistanos digam que gostariam de promover a bicicleta a seu meio de transporte oficial. Só não o fazem por uma razão: sentem que falta segurança.


Em 2010, cerca de 1.500 ciclistas morreram em acidentes de trânsito no Brasil. 

O número, apresentado de forma isolada, reforça a convicção daqueles que acreditam que as grandes cidades não estão prontas para as bicicletas. “Os ciclistas se arriscam ao ocupar um espaço físico hoje escasso”, diz Getúlio Hanashiro, ex-secretário de Transportes de São Paulo. “Nas grandes cidades, temos de investir no transporte público para tirar os carros da rua.

 Assim teremos espaço para as bicicletas.” Esse ponto de vista gradualista é contestado por quem estuda o assunto em profundidade – e tampouco encontra amparo nos números. 

Em 2007, morreram 2.111 s ciclistas no país, 29% a mais que em 2010. 

A queda do número de óbitos coincidiu com o aumento do número de ciclistas e com a implantação do programa Bicicleta Brasil, que permitiu a criação de ciclovias em vários municípios brasileiros. Essa estatística confirma o que o pesquisador de saúde pública Peter Jacobson, da Universidade de Michigan, detectou em 2003. 

Ele reuniu dados de várias cidades do mundo e confirmou que o número de acidentes envolvendo bicicletas era inversamente proporcional ao número de ciclistas. 

Ou seja, a quantidade de acidentes diminuía à medida que aumentava o número de cidadãos pedalando. É o que os cicloativistas chamam de “segurança na quantidade”.

Em São Paulo, de acordo com o Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, os dados de acidentes ainda não permitem a mesma conclusão.

Ao longo de 2011, conforme o HC, foram registrados 11 internações e 58 atendimentos de ciclistas. Neste ano, já foram atendidos 40 ciclistas e 15 foram internados. 

Na dúvida, cada um reafirma seu ponto de vista. “A presença dos ciclistas é um instrumento de mudança”, afirma o urbanista Pedro Cláudio Cunha, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Ela produz pressão para investir na estrutura das vias públicas e educar as pessoas.”

A administradora de empresas Célia Moraes, de 35 anos, arrumou coragem para enfrentar as ruas sobre duas rodas há cinco anos. Era um dia de congestionamento em São Paulo, ela estava parada no trânsito quando viu passar uma ciclista. “Ela parecia tão contente”, diz. Hoje, Célia percorre em meia hora os 10 quilômetros que separam sua casa do trabalho. De carro, levaria o dobro do tempo. 

“Quando começo a trabalhar, já fiz parte de meu exercício diário”, diz. “A bicicleta me libertou da academia. No trabalho, todo mundo fica com inveja.” Na tarde da primeira terça-feira de setembro, no entanto, não houve quem desejasse estar em sua pele. Célia levou uma fechada, caiu no asfalto e o motorista fugiu.

As ruas parecem tão inóspitas para os ciclistas porque não foram planejadas para eles, mas para os automóveis. Entre o fim do século XIX e o começo do século XX, os carros pareciam a condução do futuro.

 Os urbanistas sentiram-se à vontade para expandir os limites das cidades e descentralizar os centros comerciais. 

O modelo, adotado em países como Brasil e Estados Unidos, exige que as longas distâncias sejam cumpridas pelos carros, que até hoje dominam as ruas. 

Na Europa, as cidades são centralizadas e as distâncias a percorrer menores. É o cenário ideal para usar a bicicleta. Sua popularidade levou à construção de ciclovias, que encorajaram outros a pedalar. 

As cidades brasileiras estão começando a investir nesse rumo. Em setembro, começou a funcionar em Porto Alegre um projeto de aluguel de bicicletas, parceria da prefeitura com uma empresa. Um projeto semelhante já funciona em São Paulo desde maio. 

No Rio de Janeiro, o aluguel das “laranjinhas”, as bicicletas da prefeitura, soma 100 mil usuários cadastrados. 

Em Pernambuco, o governo do Estado planeja aumentar em 100 quilômetros a ciclovia da cidade, hoje com 74 quilômetros. Mesmo assim, a segurança não é total.

O estudante de engenharia Lucas Rosolini, de 20 anos, mora em Santos, litoral de São Paulo. Ele diz que leva sustos quando tem de sair da ciclovia, porque os automóveis investem para cima dele, na tentativa de ultrapassá-lo. “A ciclovia deveria dar a volta na cidade toda. Ela termina em pontos onde é muito perigoso disputar espaço com carros e ônibus”, diz. 

A impressão de Rosolini encontra respaldo nas estatísticas. Nas colisões em que o carro está a 30 quilômetros por hora, a probabilidade de morrer é de cerca de 10%.

 A 70 quilômetros por hora, a morte é praticamente certa. 

No Brasil, os ciclistas mais protegidos são os cariocas. 

O Rio de Janeiro tem a maior extensão de ciclovias do país, 290 quilômetros – ainda assim, pouco mais da metade de Nova York.

Nessa equação, cada um precisa fazer sua parte. 

Os motoristas devem zelar pelos ciclistas, como prevê o Código Nacional de Trânsito, porque os veículos maiores devem dar prioridade aos menores.

 Os ciclistas também têm obrigações. “Eles são veículos e precisam respeitar o Código de Trânsito”, afirma Marcelo José Araújo, consultor da Federação Nacional das Associações de Detrans. 

O analista de sistemas uruguaio José Antonio Martinez, de 61 anos, diz que o respeito é sua receita para andar com tranquilidade pelas ruas de Porto Alegre. 

Ele diz que cumpre com rigor as regras de trânsito e, por isso, não se sente ameaçado pelos motoristas. Martinez diz que só ganhou com a rotina sobre duas rodas. “Ouço os passarinhos durante o caminho para o trabalho. Estou mais em paz.”

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