Apontado como vilão do trânsito e do meio ambiente, o carro deixou de atrair os jovens como antigamente. A indústria tenta reagir
|
|
O empresário Tennyson Pinheiro, de 35 anos, usava o carro para ir de
casa para seu escritório, a 9 quilômetros de distância, em 45 minutos.
Achava isso normal, até passar dez dias em Londres, em 2009. “Lá, todo mundo anda de metrô”, diz. “Percebi que tinha uma rede de transporte público razoável em São Paulo,
e nem usava.” Pinheiro e sua mulher, que não têm filhos, experimentaram
deixar o carro na garagem por um mês. “Gostei tanto que vendi o carro”,
afirma. “Pagava caro para mantê-lo, vivia estressado e não me ligava à
cidade.” Pinheiro não está sozinho.
Uma parcela cada vez maior dos
jovens decide viver sem carro. “Há um paradoxo no Brasil”,
diz João Cavalcanti, sócio da consultoria de mercado Box 1824. “Nunca
se comprou tanto carro, mas, ao mesmo tempo, o desejo por eles está
caindo.” De acordo com o consultor Bob Lutz, ex-vice-presidente de BMW,
Ford, Chrysler e General Motors, a queda do interesse por automóveis é
uma tendência mundial. “A sedução do carro não faz mais sentido”,
afirmou a ÉPOCA. “Dirigir será um lazer excluído das cidades, como andar
a cavalo.”
O paradoxo do Brasil, onde a venda de automóveis cresce, e as pesquisas
de mercado mostram a queda do interesse, se explica pela diversidade do
país. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores
(Anfavea) afirma que a média brasileira de 6,1 habitantes por carro
ainda é alta e deverá cair à metade até meados de 2020.
O crescimento
nas vendas é puxado pela demanda reprimida das regiões Norte e Nordeste.
No Sul e no Sudeste, o aumento da frota passou a acompanhar o
crescimento da população.
Nessas regiões, observa-se a queda de
interesse pelos carros. Segundo a Pesquisa Origem e Destino, do Metrô, a
relação de carros por habitante em São Paulo manteve-se estável entre
1997 e 2007. Nesse período, o uso de transporte público subiu de 45%
para 55%.
O interesse do consumidor diminui à medida que o automóvel deixa de
cumprir sua principal promessa: a mobilidade. Em 2009, a Fundação Dom
Cabral publicou um estudo que afirma: o trânsito está à beira do colapso
no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Os momentos de trânsito intenso se prolongam de tal forma que, em 2013,
não haverá mais calmaria entre os horários de pico da manhã, da tarde e
da noite. Os engarrafamentos tendem a se prolongar e virar uma coisa
só.
A imobilidade do automóvel desafia o modelo de moradia importado dos Estados Unidos,
que virou sonho da classe média brasileira a partir da década de 1970,
em bairros como Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ou Morumbi, em São
Paulo: morar afastado do centro, numa casa ampla com mais de duas vagas
na garagem.
O novo sonho da classe média é viver perto do transporte
público. Segundo a imobiliária Lopes, 63% dos futuros lançamentos
residenciais em São Paulo estarão a até 1 quilômetro de uma estação do
metrô. “Estar perto delas valoriza os imóveis em cerca de 20%”, diz
Mirella Parpinelli, diretora da Lopes.
Nos Estados Unidos, os jovens estão comprando menos carros, tirando
carteira de habilitação mais tarde e dirigindo menos quilômetros. A
fatia de mercado do público entre 21 e 34 anos encolheu de 38%, em 1985,
para 27%, diz o instituto de pesquisas CNW.
A Universidade de Michigan
afirma que, em 2008, 18% da população entre 20 e 24 anos não tinha
carteira de motorista – em 1983, esse índice era de apenas 8%. Segundo o
grupo de estudos Frontier, a distância percorrida por motoristas entre
16 e 34 anos diminuiu 23%, entre 2001 e 2009. No mesmo período, o uso de
bicicleta aumentou 24%.
A queda do interesse por carros é, em parte,
fruto da crise econômica.
Na Espanha, a taxa de desemprego da população
entre 16 e 24 anos alcançou 53%. A recessão não é a única responsável
pelo declínio dos carros. “Mesmo jovens empregados, ou de famílias
ricas, estão dirigindo menos”, afirma Tony Dutzig, responsável pelo
estudo do Frontier. A General Motors encomendou uma pesquisa à MTV
Scratch, consultoria que estuda tendências de consumo. Cerca de 3 mil
jovens apontaram suas marcas favoritas, num universo de 31. Google e
Nike lideraram a lista.
Nenhuma montadora ficou entre as dez primeiras.
Para Jim Lentz, presidente do departamento de vendas da Toyota nos
Estados Unidos, o desapego juvenil veio para ficar. “Temos de encarar a
realidade crescente de que os jovens não parecem interessados em
automóveis, como eram as gerações anteriores”, diz Lentz.
A perda de interesse por ter um carro particular é uma novidade
histórica. Automóveis viraram parte das famílias de classe média desde
1908, quando o americano Henry Ford lançou o Modelo T, vendido
inicialmente por US$ 850 (US$ 21 mil, em valores de hoje).
Antes do Ford
T, carro era brinquedo de gente rica e excêntrica. Depois dele,
tornou-se um produto de massa. “Farei um carro grande o bastante para
levar a família, e pequeno o bastante para uma pessoa dirigir e cuidar”,
disse Ford, em seu livro Minha vida e trabalho. “Ele terá
preço tão baixo que todo homem de bom salário será capaz de ter.” A
produção anual da Ford passou de 10 mil unidades, em 1908, para mais de 2
milhões, em 1923. Hoje, o mundo tem cerca de 1 bilhão de carros.
A cada
ano, são fabricados 60 milhões.
No século XX, o automóvel se tornou parte indissociável da sociedade.
“Perguntar se os carros moldaram a cultura ou se a cultura moldou os
carros é uma variação da questão entre ovo e galinha”, diz Paul
Ingrassia, autor do livro Engines of change (Motores de mudança,
inédito no Brasil).
A urbanização dos EUA foi sustentada pelo meio de
transporte individual, com moradias distantes do centro da cidade,
ligadas ao local de trabalho por vias largas. O Brasil acompanhou esse
modelo após a década de 1940, abandonando o investimento em trens e
bondes, em favor de ruas e avenidas para carros.
No pós-guerra, o carro se estabeleceu como instrumento de afirmação dos
jovens, ao proporcionar liberdade, coesão social e status. Esse papel
foi registrado nas produções artísticas.
No livro Pé na estrada
(1957), de Jack Kerouac, garotos cruzam os Estados Unidos num carro. No
caminho, fazem amigos, descobrem o mundo e se descobrem.
No filme Juventude transviada,
de 1955, James Stark, interpretado pelo ator James Dean, usa calça
jeans, camiseta branca, fuma e tem um carro. Sentados num para-choque,
ele e sua garota combinam nunca mais voltar para a casa de seus pais.
Quando desperta a ira do líder de uma turma rival, Stark combina um
duelo ao volante. Nas horas vagas, Dean era piloto.
Morreu dirigindo seu
Porsche Spyder, aos 24 anos, fundindo ator e personagem num mito da
juventude eterna. O paradigma para os homens maduros surgiu em 1962, nos
filmes de James Bond.
O agente 007 usava terno e gravata, fumava cigarro, dirigia um Aston
Martin e tinha mulheres a seus pés. James Dean e James Bond
personificaram o padrão ocidental de sucesso masculino. “Um homem com
mais de 26 anos, dentro de um ônibus, pode se considerar um fracassado”,
disse Margaret Thatcher, em 1986, quando era primeira-ministra do Reino Unido.
A mensagem | |
---|---|
Para os motoristas Razões do sucesso do carro, como prazer de dirigir e liberdade, estão comprometidas pelo trânsito excessivo Para os pedestres A indústria automotiva tenta reagir para se reafirmar como aliada da mobilidade urbana |
A frase de Thatcher tende a virar um registro de uma era que passou. A
fumaça dos automóveis, com seu motor a combustão, segue caminho
semelhante ao da fumaça dos cigarros.
Assim como o cigarro virou alvo de
campanhas que apontam o fumo como causa de doenças, o carro foi eleito
um dos grandes culpados pelas mudanças climáticas.
A causa ambiental
ganhou força após a exibição do documentário Uma verdade inconveniente
(2006), do ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, e da
realização do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC),
da Organização das Nações Unidas (ONU),
em 2007.
O documento da ONU afirma que o transporte rodoviário responde
por 24% das emissões de CO2 nos Estados Unidos e 22% na Europa.
A
condenação do carro coincidiu com a emergência dos artigos eletrônicos,
como smartphones e tablets, como sonho de consumo. Eles cumprem papéis
historicamente atribuídos aos carros: encurtam distâncias e exprimem a
individualidade de seu dono. Sua constante inovação confere status
social àqueles que compram o último modelo. “Muitos jovens preferem
comprar smartphones a tirar habilitação”, diz Tony Dutzik, pesquisador
do Frontier. “Eles reduzem a necessidade de locomoção, para manter
contato on-line com os amigos.”
Formas de uso mais flexível dos meios de transporte também começam a se
afirmar. Rio de Janeiro e São Paulo adotaram sistemas de aluguel de
bicicletas, seguindo o modelo do programa Vélib, de Paris. Los Angeles,
cidade americana historicamente devotada ao automóvel particular, está
implantando corredores de ônibus rápido, com faixas exclusivas, como em
Curitiba, no Paraná, e Bogotá, na Colômbia. O ciclista deixa sua
bicicleta num rack, à frente do ônibus, e sai pedalando de qualquer
ponto. Em São Paulo, a empresa Zazcar aluga carros por frações do dia,
debitáveis de um cartão pré-pago. A inspiração é a empresa Zipcar.
Fundada em 2000, nos Estados Unidos, a Zipcar tem cerca de 770 mil
clientes.
A indústria do automóvel está reagindo. A nova tendência entre as
montadoras é tentar se afirmar como empresas de mobilidade, em que o
carro é uma entre várias opções. O Salão do Automóvel de São Paulo foi
um sinal da mudança de ares.
Nunca o evento teve tantas bicicletas
quanto na 27ª edição, encerrada em novembro. Foram ao menos 12,
presentes no estande de nove montadoras. Estavam ali para enfeitar
carros de apelo jovem, como o jipe EcoSport, mas não só por isso.
“Dependendo da aceitação do público, passaremos a vender nossa bicicleta
elétrica no Brasil”, diz Oswaldo Ramos, diretor de marketing da Ford.
“Ela é importante para fortalecer nossa imagem.” Na Europa,
a BMW lançou um aplicativo de smartphone que mostra a maneira mais
rápida para ir de um lugar a outro. Por vezes, o roteiro propõe
estacionar o carro e pegar um trem. “A marca BMW tem a ver com
eficiência e prazer”, diz Henning Dornbusch, presidente da BMW do
Brasil. “Queremos proporcionar isso, mesmo se a locomoção mais eficiente
e prazerosa não incluir o carro.”
A empresa implantará na Alemanha um
projeto de compartilhamento de garagens.
Quem mora no bairro A e
trabalha no bairro B poderá trocar de vaga, durante o expediente, com
quem faz o caminho contrário. “Queremos incentivar o melhor uso do
espaço”, diz Dornbusch.
A oferta de carros híbridos e elétricos é outra resposta da indústria
automobilística às críticas à poluição.
O exemplo mais bem-sucedido é o
Prius, lançado pela Toyota em 1997. Em baixas velocidades, ele usa um
motor elétrico, sem emitir fumaça.
Um pequeno motor a gasolina é
acionado em altas velocidades e para recarregar as baterias. O uso
combinado permite ao carro rodar a média de 20 quilômetros por litro de
gasolina, metade do consumo de um Toyota Corolla.
O Prius era (e é)
caro, como foram outras tentativas de fugir ao tradicional motor a
combustão. Segundo o jornal The New York Times, a economia de
combustível de um carro híbrido leva oito anos para compensar o maior
investimento na compra.
O Prius deu certo ao se firmar como alternativa
ecologicamente correta em oposição aos Hummers – jipões capazes de
escalar paredes, com consumo na casa de 6 quilômetros por litro.
A
diferença entre os dois mundos foi registrada pelo The New York Times na festa do Oscar de 2004. “Hugh Hefner (o já decadente fundador da revista
Playboy) chegou num Hummer”, disse o jornal. “Tom Hanks chegou de
Prius.” Em janeiro, a Toyota lançará o Prius no Brasil. Não é uma aposta
no escuro.
No ano passado, a Ford vendeu no país 200 unidades da versão
híbrida do Fusion, por R$ 130 mil – 60% mais que o modelo comum.
Motores menos poluentes reduzem o impacto ecológico do carro, mas não
alteram seu impacto no espaço. Em silêncio, e sem emitir fumaça, o
motorista de um híbrido continuará limitado pelo tráfego e pelas leis de
trânsito.
No futuro, aqueles que amam dirigir rápido, como nos filmes
de James Dean e James Bond, encontrarão saída em lugares fechados.
Os
condomínios autódromos já existem nos Estados Unidos. Em breve chegarão
ao Brasil. Em vez de campo de golfe ou haras, a atração principal será
uma pista de corrida, que ocupa uma grande extensão do terreno, cercado
por casas. Uma imobiliária planeja lançar um assim, no interior de São
Paulo, assinado pelo ex-bicampeão de Fórmula 1 Emerson Fittipaldi. Cada
vez menos agradável nas cidades, o carro particular poderá um dia deixar
de ser um meio de transporte para voltar a ser um mero brinquedo.