Erminia Maricato sustenta: poder econômico despreza Planos
Diretores, evita debates, introduz políticas por conchavos; em SP,
prioridade é urbanizar periferias
A urbanista e professora da Universidade de São Paulo Erminia
Maricato afirma que as forças que movem a especulação imobiliária põem
em risco a promessa de renovação na maneira de se pensar a ocupação dos
espaços na capital paulista, em contraponto com o que acena o prefeito
Fernando Haddad. “O centro de São Paulo vive uma queda de braço há muito
tempo.
Há 30 anos ouvimos falar em moradia popular naquela região”,
disse à Rede Brasil Atual, ao relatar que o mercado ignora a necessidade de moradia para famílias de menor renda.
Ela lembrou também que o sucesso de uma política urbana
construída a partir do diálogo com a sociedade precisa levar em
consideração também um fator que foge ao controle do prefeito: o
crescente número de automóveis que “entopem” as ruas e que leva ao
confronto entre o transporte público e o privado, ambos vorazes
consumidores de recursos.
Ermínia Maricato foi secretária de Habitação de São Paulo na
gestão de Luiza Erundina (1989-1993) e secretária executiva do
Ministério das Cidades do governo Lula.
Ao comentar o chamamento ao diálogo feito por Haddad na última
semana, Ermínia afirmou que o encontro foi importante e que espera que a
sociedade aproveite o momento para organizar o debate sobre a cidade
que espera ter no futuro. “O prefeito não pode tudo” Acompanhe os
principais trechos da entrevista:
Você já disse algumas vezes que se deveria parar de discutir o
Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo ecomeçar a pensar a
política de urbanização da cidade de outras formas. A prefeitura iniciou
há alguns dias as discussões para a construção de um novo PDE, num
processo que pretende ser plenamente democrático. Mas na sua opinião,
que importância terá essa discussão?
O Millôr (Fernandes, escritor e jornalista) soltou uma frase uma vez
que era assim: os sábios discutem as incertezas, os ignorantes atacam de
surpresa.
O Plano Diretor é uma peça para os “sábios” discutirem. Ele é
um fetiche na nossa sociedade, é um mito até para a mídia. Já temos
vários textos sobre “a ilusão” do Plano Diretor. Porque se ele fosse
colocado em prática, nenhuma cidade brasileira teria os problemas que
tem, principalmente essa falta de controle sobre ocupação do solo.
O Plano Diretor propõe coisas como harmonia, alegria e tudo o mais.
Porém, você tem um investimento do Orçamento Público que vai para o
outro lado.
Todo Plano Diretor fala que a prioridade é transporte
público, mas aí se investe muita mais em pavimentação, em pontes,
viadutos e túneis, tudo para o automóvel andar. Você está indo contra o
Plano Diretor.
Muita gente acha que política urbana é obra – e não é. Política
urbana é principalmente a orientação do uso e da ocupação do solo. Onde
você vai manter a beira dos riachos e rios, onde você vai adensar
moradia, onde vai ter metrô e trem. Mas no Brasil é obra.
Porque está
ligada com essa coisa de financiamento de campanha. Eu só tenho medo que
esse Plano Diretor adquira essa característica do fetiche. A gente fica
distraída e não percebe para onde realmente o investimento tá indo.
O urbanista João Sette também falou sobre a compra de
terrenos na margem do Tietê por grandes empresas em um texto recente.
Você já ouviu algo a respeito disso?
Sabemos que há muito capital privado comprando terreno na cidade em
determinadas regiões.
Nós temos um grupo de pesquisa no laboratório de
habitação da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo) bem grande.
E temos estudantes que estão monitorando o
mercado imobiliário, as características dos terrenos que estão sendo
adquiridos, tipologia, preços, quais são as empresas, os canteiros de
obras. Estamos estudando o centro da cidade há muito tempo.
Seria fundamental que a universidade colocasse tudo isso a serviço da
população, para diminuir o “analfabetismo” urbanístico. Mas tem uma
parte da academia que fala coisas que não interessam à população e tem
outra que fala de um jeito que a população não entende.
Mas a gente já
tem um “approach” com movimentos sociais. Já temos um pouco este
traquejo, de estar ligado à informação acadêmica e também a pessoas que
são líderes de bairros, de movimentos interessantes.
A prefeitura de São Paulo e governo do estado anunciaram uma
parceria para construção e reforma de 20 mil moradias no centro de São
Paulo na semana passada. Como você avalia essa iniciativa? O que isso
significa do ponto de vista dessa tentativa de democratização do Centro?
Eu, na verdade, estou na torcida. Estamos num país onde a segregação é
tão forte… o centro de São Paulo é uma área que está numa “queda de
braço” há muito tempo.
Há 30 anos você tem projetos que falam em trazer
moradia social para a região.
Como o capital imobiliário não sabe
trabalhar com a moradia social – pra famílias com renda abaixo de seis
salários mínimos – não existe interesse.
Então, há um conflito no centro de São Paulo. Tem muitos mestrados,
doutorados, livros que mostram estes conflitos nos últimos trinta anos.
Quando o prefeito fala “nós vamos construir 20 mil unidades, ele está
apostando em um espaço que seria um dos poucos nesse país em que
teríamos uma democracia. E seria a melhor de trazer segurança para
aquele lugar, para qualquer lugar.
É o contrário do que uma classe média ou uma elite conservadora
pensa.
A hora que você tem uma mistura, que você tem chance de andar de
dia e de noite, porque de noite tem gente que mora lá, não é só um lugar
de trabalhar. Tem uma mulher, chamada Jane Jacobs que escreveu um livro
chamado A Morte e Vida das Grandes Cidades em que ela
fala exatamente isso: o centro morre à noite e os subúrbios – ela está
se referindo aos subúrbios americanos – morrem de dia.
Para o centro não morrer à noite, temos que ter moradia no centro.
Ter o centro vivo é o que traz a segurança. Ela até fala “nos olhos da
rua”.
Os olhos da rua são os comerciantes, que estão abertos durante o
dia, e de noite, a população. O livro é de 1961. Veja, há tanto tempo
ela está falando isso, e a gente continua segregando.
Na
última quinta-feira (27) você e outros urbanistas importantes
estiveramcom o prefeito Fernando Haddad. Como foi a conversa? Ele
perguntou a opinião de vocês sobre os projetos que a prefeitura tem
apresentado?
Ele expôs o que tem sido feito, a suspensão do projeto Nova Luz,
falou sobre o Arco do Futuro e as providências já tomadas para aumentar o
número de corredores de ônibus. Falou também sobre a área de
desenvolvimento urbano como um todo.
A questão da inclusão social, da
moradia social na área mais central da cidade … Ele queria ouvir um
pouco o que a gente acha disso, foi uma conversa informal mesmo,
interessante, descontraída.
O prefeito está bem intencionado, mas o quadro não é muito rosa, não.
Por exemplo, esse “entupimento” de automóveis na cidade. Essa é uma
coisa que não é o prefeito que define, quantos automóveis vão andar na
cidade.
Ele tem o poder de tornar o transporte público mais importante.
Mas mesmo assim é uma disputa pelo transporte privado.
Apostamos em um
modelo tão irracional que é este de todos ficarem dentro de um automóvel
e causar todos os males que o automóvel causa; de poluição, doenças,
aquecimento global, depressão … porque aceitamos este modelo?
O prefeito não pode tudo. É isso que seria muito importante a
sociedade discutir. Ninguém diz no Brasil que o automóvel é prioridade
na mobilidade, você não acha isso escrito em nenhum lugar.
Pelo
contrário, você vai na legislação, na lei de mobilidade que foi aprovada
este ano, e está lá que o transporte público é a prioridade.
E não sai
do papel. Agora, se a sociedade fosse mais esclarecida sobre quais são
as forças que estão em jogo, e que às vezes precisamos criticar o
prefeito, mas outras vezes, precisamos apoiar.
Ou chegar no prefeito e
falar: o que nós queremos é isso.
E como avaliar o que a prefeitura vem fazendo em termos de políticas urbanas?
Nós estamos sob uma intensa dominação das cidades brasileiras por
parte de forças cuja principal preocupação não é o interesse público,
pelo contrário.
As grandes empreiteiras de infraestrutura estão entrando
no mercado imobiliário – e há uma grande especulação imobiliária no
país. Estamos diante de uma crise configurada para o interesse público.
A
maior parte das pessoas não tem condição de entrar no mercado
imobiliário, nem com a ajuda de programas como o “Minha Casa, Minha
Vida.”
Acho que esta situação precisa ser esclarecida para a população, a
sociedade tem de se informar. Porque eu não vejo como o Executivo pode
resistir a isso.
A gente sabe o poder que o capital das grandes
empreiteiras, o capital imobiliário – para não falar do setor automotivo
– têm sobre as câmaras municipais. Como se vai controlar, regular isso?
É muito difícil.
Agora, eu acho que a prefeitura tem de fazer o que a correlação de
forças permite a ela fazer. Se tem a intenção de tornar a sociedade mais
democrática, em primeiro lugar vem o transporte público.
E parece que
realmente ele (o prefeito Haddad) tomou iniciativas importantes; em
segundo lugar é preciso democratizar o centro de São Paulo e suspender
aquela coisa absurda e vergonhosa que era entregar patrimônio público
quase de graça na mão das empreiteiras, como era na Nova Luz (projeto de
intervenção urbana capitaneado pelo ex-prefeito Gilberto Kassab).
E o Arco do Futuro?
Eu acho que muita gente considera importante reabilitar certas áreas
de São Paulo, mas meu ponto de vista – e foi isso que eu conversei na
reunião –, é que existe uma dívida com a periferia.
Os bairros das
periferias precisam se transformar em bairros urbanos.
Precisam ter
qualidade, oferta de serviços, oferta de infraestrutura, o que existe em
certos bairros bons da cidade.
Não digo que precisa ser igual a
Higienópolis, mas é óbvio que você precisa retomar a proposta dos CEUs
(Centros de Educação Unificados), por exemplo. Com os CEUs, você leva
para o bairro pobre um serviço moderno, civilizatório. Uma qualidade de
esporte, de lazer e de ensino que é um antídoto contra a violência. A
minha posição é essa. Não sou defensora irrestrita do Arco do Futuro.
Dá para dizer que estas medidas iniciais são importantes, mas
são “centrocêntricas”? Muitas coisas concentradas no centro de São
Paulo …?
A ideia é trazer para o centro parte da periferia.
O pessoal que está
defendendo o Arco do Futuro está pensando nisso. Você tornar estes
espaços centrais mais democráticos.
Porque é a região com melhores
condições de mobilidade. Se isso fosse claramente possível eu apoiaria,
mas eu temo que não seja.
Porque o que tenho visto é que a sociedade
brasileira tem um viés muito cruel de concentração de riqueza.
Por
exemplo: essa história de que pobre nas proximidades, abaixa o preço do
metro quadrado. Porque ninguém quer pobre perto de casa. Se conseguir
fazer um mix, eu acho ótimo.
O secretário de Desenvolvimento Urbano
(Fernando Mello) me explicou que eles estão fazendo também um
levantamento dos recursos existentes na periferia. Estão com grupos
intersetoriais em cada regional.
O que é uma “super” novidade. Ter
diversas secretarias no mesmo lugar para discutir a mesma coisa.
Não
adianta achar que desenvolvimento urbano vai se resolver sem a
participação direta da área da Saúde, e principalmente sem a área de
transporte.
http://ponto.outraspalavras.net/2013/03/05/a-guerra-invisivel-nas-cidades-brasileiras/