Em 2050, mais de mais 70% da população estarão nas cidades
BARCELONA — As estimativas são da Organização das Nações Unidas
(ONU). Todos os dias, cerca de 200 mil pessoas passam a morar em áreas
urbanas em todo mundo.
Até 2050, as cidades deverão concentrar 70% da população do planeta, índice já superado pelos países da América Latina e Caribe, regiões com maiores percentuais (80%).
Tantas pessoas num mesmo lugar trazem enormes desafios, muitos deles comuns para brasileiros, mexicanos, colombianos: uma grande pressão por consumo de recursos naturais, que são finitos, e um aumento diário da demanda por serviços.
Até 2050, as cidades deverão concentrar 70% da população do planeta, índice já superado pelos países da América Latina e Caribe, regiões com maiores percentuais (80%).
Tantas pessoas num mesmo lugar trazem enormes desafios, muitos deles comuns para brasileiros, mexicanos, colombianos: uma grande pressão por consumo de recursos naturais, que são finitos, e um aumento diário da demanda por serviços.
A imagem acima representa bem as consequências desse cenário. Criada
pelo artista catalão Francesc Palomas, a aquarela de uma cidade
superpovoada retrata um lugar com muita poluição, excesso de veículos,
congestionamentos, poucas áreas verdes, produção abundante de lixo.
Uma
região urbana que incorporasse os preceitos de uma cidade sustentável
deveria ser também mais verde e menos poluída. É um lugar mais agradável
para se viver, como mostra a ilustração da próxima página, do mesmo
artista.
Mas como transformar essa cidade imaginada em realidade?
Apesar da crise econômica mundial que se arrasta há anos, uma série de
instituições públicas e privadas, além de organizações não
governamentais, têm apostado na tecnologia para encontrar soluções
inovadoras no caminho do consumo racional de energia e água, gestão do
trânsito, redução de CO², coleta de detritos e uso de transporte
sustentável. São as chamadas cidades inteligentes.
Embora a
tecnologia da informação seja uma das principais características na
gestão das cidades inteligentes, especialistas, prefeitos e cientistas
sociais têm defendido a necessidade de o uso dessas ferramentas
promoverem ambientes colaborativos.
Aparentemente simples, a proposta
tem um efeito bastante significativo. Muitas soluções para os problemas
locais dependem das informações que os próprios moradores têm acesso —
ou podem gerar para as prefeituras — através, por exemplo, dos seus
celulares.
— Cidades inteligentes não são apenas municípios
dotados de infraestrutura tecnológica, mas aquelas que buscam ações
coordenadas que facilitem o acesso dos cidadãos aos serviços e ao
conhecimento. Sem essa preocupação, investir apenas em tecnologia pode
resultar num grande gasto em equipamento, mas em pouco ou quase nenhum
retorno social e econômico para a população — observa Tim Campbell,
autor do livro “Além das Cidades Inteligentes” e presidente do Urban Age
Institute, ONG com sede em Berkeley, nos Estados Unidos.
Com a
medida que envolve a participação, Amsterdã faturou o prêmio principal
do II Congresso Mundial de Cidades Inteligentes, realizado em Barcelona,
em novembro.
Todo o sistema de trânsito da cidade holandesa foi aberto
para pedestres e motoristas, que agora podem acompanhar por seus
smartphones qual é a melhor opção para se locomover no município, em
especial com o uso das bicicletas. Iniciativa semelhante já existe em
Barcelona, na Espanha. Lá, a população pode visualizar num mapa digital a
localização exata do trem, táxi, metrô ou ônibus que deseja utilizar.
Tudo por um aplicativo instalado nos celulares.
Em Águeda,
Portugal, a prefeitura criou uma série de serviços pela internet e
iniciou um projeto de incentivo ao uso compartilhado de bicicletas
elétricas.
A ideia surgiu por uma questão topográfica. O prefeito da
cidade, Gil Nadais, conta que as ruas do município português são muito
íngremes, o que dificulta o uso da bicicletas tradicionais:
— Com a abertura dos dados nos aproximamos da população e incentivamos o envolvimento dos moradores com os demais projetos.
Além
de permitir o acesso ao sistema de trânsito, a administração de Seul
tem apostado agora na troca de informações por meio digital com os
moradores. O objetivo é identificar o mais rapidamente possível as
demandas da população.
— O nosso modelo consiste em ter capacidade
de predizer os acontecimentos que afetam a vida das pessoas; saber o
que está acontecendo no exato momento; e dar respostas precisas às
demandas — explica Jong Sung Hwang, assistente do governo metropolitano
de Seul.
Sensores no celular
Exemplos de
incentivos à colaboração acontecem também nos Estados Unidos, no México e
em Israel. Em Boston, a administração local convidou a população a usar
um aplicativo nos seus celulares que é capaz de monitorar o estado de
conservação das ruas.
O equipamento permite que as trepidações sofridas
pelos carros durante o percurso gerem informações online para a
prefeitura. Tudo é apresentado num mapa na internet e, depois, é
disponibilizado aos moradores.
— Com essas informações sabemos
rapidamente onde há problemas nos quais precisamos atuar — explica Nigel
Jacob, gerente do escritório de novas tecnologias urbanas da prefeitura
de Boston, nos Estados Unidos.
A administração de Haifa, em
Israel, tomou uma decisão radical: zerar o uso de papéis nos processos
de licença urbanística. Tudo foi digitalizado e está disponível ao
cidadão. A medida foi tomada em 2008 depois que a prefeitura notou um
declínio nas licenças para novas construções.
O principal problema
detectado era a burocracia para obter os documentos. Caso parecido
ocorreu na cidade mexicana de Zapapon.
A prefeitura reuniu 600 moradores
e, após três meses de muito trabalho, elaborou um mapa em 3D da
cartografia da cidade. Todo mundo sabe onde estão e quais são as
construções irregulares, e onde é preciso haver intervenção.
Se
existe ainda distância considerável entre a realidade dos grandes
centros urbanos e a ideia de uma cidade de fato sustentável, iniciativas
urbanísticas, associada ao uso de tecnologia, têm mostrado que é
possível mudar o modo de vida em alguns lugares.
Na Espanha, foi
construída, em Zaragoza, uma EcoCidade, que procura seguir os princípios
estabelecidos pelo Protocolo de Kioto, isto é, baixa emissão de gases
poluentes e uso racional de recursos naturais.
O bairro de
Valdespartera começou a ser erguido em 2002 e foi concluído seis anos
depois, num antigo terreno militar. O projeto foi possível graças a uma
parceria público-privada que investiu cerca de R$ 3 bilhões.
Com 243
hectares e 9.687 apartamentos, a EcoCidade espanhola é toda administrada
por sistemas de informação online. O Wonderware permite ao centro de
controle tomar uma série de decisões como regar as áreas verdes de
acordo com as condições de temperatura e a umidade relativa do ar.
O
sistema de informação, que custou cerca de 0,26% do investimento total
do empreendimento, permite também controlar à distância o consumo de
energia e gás das residências. Desde que foi criado, o bairro de
Valdespartera mantém um consumo de energia entorno de 0,06 kw/h por m²,
quase metade do registrado na Espanha (0,11 kw/h por m²).
Além do
monitoramento do uso da energia, a EcoCidade faz coleta seletiva de
resíduos, que são levados diretamente para a reciclagem.
—
Entendemos que a sustentabilidade urbana é baseada no conhecimento e na
possibilidade de verificação dos dados em tempo real. Assim podemos
tomar medidas com maior poder de precisão — explica o administrado da
EcoCidade, Miguel Portero.
Embora a experiência em Valdespartera
tenha chamado a atenção de urbanistas e instituições preocupadas com o
futuro das cidades, Portero defende que modelos como esses sobrevivem
exclusivamente se tiverem o apoio da população local:
— A ideia de
cidade inteligente não deve, é claro, ser limitada à análise de dados
para a tomada de decisões estratégicas. É preciso estar atento também às
demandas da população para que ela sinta e perceba que há feedback do
administrador. Portanto, o cidadão é o centro entorno do qual a cidade
inteligente deve ser organizar.
O foco nas cidades sustentáveis
pode ajudar municípios que não têm apresentado bons desempenhos no
“Índice de Prosperidade das Cidades”, produzido pela agência Habitat da
ONU. O indicador, que vai de 0 a 1 (quanto mais próximo de 1, melhor),
sintetiza a relação entre cinco fatores considerados importantes para o
desenvolvimento dos centros urbanos: infraestrutura, produtividade
econômica, qualidade de vida, inclusão social e sustentabilidade
ambiental. Viena, na Áustria, atingiu o maior índice (0,925), bem
distante, por exemplo, de Bamako (0,491), em Mali, ou de São Paulo
(0,757), única cidade do Brasil na lista da ONU.
Construções sustentáveis
Com
0,890, o quinto melhor índice do indicador, Estocolmo, na Suécia, é uma
das cidades que integram o programa do governo, em parceria com a
iniciativa privada. Seu nome: SymbioCity. O projeto incentiva o
desenvolvimento sustentável do município a partir de uma ideia simples:
fazer mais por menos.
Atualmente estão em construção cerca de 11
mil apartamentos próximo ao centro de Estocolmo, todos projetados para
serem sustentáveis. Os novos imóveis vão ajudar a reduzir em 25% o
consumo de água e em 40% o impacto ambiental na região. Para isso, vão
receber placas solares, que produzem a energia que os moradores
utilizarão. A água da chuva será captada e usada nos banheiros.
O lixo
será coletado por sistema de tubos e levado, depois de recolhido,
diretamente para a reciclagem ou produção de combustível. Atualmente,
75% dos detritos da cidade já recebem esse tratamento.
Em
Estocolmo, outros números ajudam a explicar a boa posição da cidade no
indicador da ONU. Cerca 65% dos moradores utilizam o sistema de
transporte ferroviário, considerado de baixa emissão de poluentes porque
opera com energia renovável.
No centro da cidade, todos os ônibus
utilizam como combustível o etanol ou biogás. Segundo Jennifer Ekstrom,
representante do projeto SymbioCity, a crise do petróleo nos anos 70,
levou os suecos a discutirem alternativas de crescimento a partir de
energia menos poluente.
— Entre 1996 e 2008, conseguimos reduzir
em 18% a emissão de gases poluentes e, ao mesmo tempo, manter o
crescimento do PIB que subiu 45% no período — afirma Jennifer.
Também
pressionados pelo crescimento das suas cidades, países da América
Latina e do Caribe, incluindo o México, deverão encarar o desafio de
tornar seus centros urbanos mais sustentáveis num futuro próximo. Em
seis décadas, a região ganhou oito megacidades, como São Paulo, Rio de
Janeiro, Cidade do México e Lima. E os problemas, como trânsito,
poluição, geração de detritos e altos índices de pobreza se acumulam.
A
produção diária de lixo na região, por exemplo, chegou a 436 mil
toneladas por dia, este ano, o que significa um aumento de 60% em
relação a 1995. Naquele ano, a ONU-Habitat registrou 275 mil toneladas
diárias. Por outro lado, 180 milhões de pessoas vivem em condições de
pobreza (33%). Destes, 13% ainda são indigentes.
Para Tim
Campbell, Phd em planejamento urbano pelo Massachusetts Institute of
Technology (MIT) e diretor do Urban Age Institute, as políticas de
combate à pobreza e geração de emprego devem caminhar juntas com a
adoção de medidas que possam mitigar os problemas das grandes cidades
dos países em desenvolvimento:
— A meu ver, as cidades
brasileiras, assim com as da Índia e da China, iniciaram esse longo
processo para se tornarem cidades inteligentes com, por exemplo, a
adoção de medidas para conservar seus recursos naturais, bem como a
criação de novos sistemas de trânsito. Mas nenhuma cidade pode ser
considerada inteligente sem pensar na criação de empregos e na redução
da pobreza. Resolver essas questões permitirá que os moradores possam
usufruir das melhores tecnologias em trânsito, habitação e
infraestrutura.
Usuários passivos
Diretor
do Observatório da Sociedade, Governo e Tecnologias da Informação, da
Universidade de Externado, na Colombia, Marco Antonio Peres Useche
participa de um projeto com mais sete universidades nos Estados Unidos,
Ásia e Europa com objetivo de definir o que seria uma cidade
inteligente, segundo a realidade de cada região. Para ele, a América
Latina e Caribe não podem ser “usuários passivos de tecnologia”:
—
Acho que a discussão sobre cidades inteligentes não deve ser como é na
Europa e em outros países desenvolvidos. Só tecnologia não basta. Penso
que ela é menos relevante porque as cidades são espaços de seres
humanos, que envolvem questões e os conflitos humanos e suas
dificuldades sociais. Na América Latina e Caribe temos questões
importantes para serem resolvidas, como a pobreza e a preservação dos
recursos naturais.
Apesar da crítica, Useche acredita que há
iniciativas importantes no Rio de Janeiro, Medellín e Bogotá que
utilizam tecnologia, mas buscam associá-las às demandas locais. Para
ele, o Centro de Comando e Controle (COR) inaugurado no Rio, em 2010,
tem uma proposta interessante porque reúne todos os órgãos do município
para a tomada de decisão. Em Medellín, o governo trabalha desde 2002 num
projeto de renovação urbanística, que inclui a preservação de áreas
verdes e a recuperação de áreas pobres do município, e que é apontado
como uma alternativa de fazer uma cidade inteligente.
Segundo o
arquiteto Jorge Pérez Jaramillo, diretor do Instituto de Estudos
Metropolitanos e Regionais da Faculdade de Arquitetura da Universidade
Bolivariana, com sede Medellín, as mudanças na cidade começaram após uma
profunda crise vivida nos anos 90: altos índices de criminalidade,
estagnação econômica, desigualdade social entre outros problemas.
O
saldo foi a mobilização do governo e da sociedade que passaram a
discutir medidas para retomar o desenvolvimento. Nesses dez anos, foram
construídos, por exemplo, oito parques, novas escolas, 450 edifícios
residenciais, novas vias, centros de educação infantil e áreas de
convivência.
— Nossa crise gerou uma cidade renovada, com uma
cidadania ativa, com esperança no futuro e com novas formas inteligentes
de intervenção — explica Jaramillo.
Em Bogotá, o governo iniciou o
projeto “Bogotá Humano”, que consiste em medidas para incentivar a
indústria criativa e a participação. Serão inauguradas áreas
tecnológicas, que consistem em ambientes prontos para a instalação das
novas empresas.
O projeto, estimado em US$ 650 milhões, prevê a criação
de Wi-Fi público em parques, praças e corredores culturais. Dez pontos
já estão em funcionamento. Cerca de 450 escolas vão ganhar conexão à
internet em alta velocidade.
— A educação digital é um direito.
Esse direito é uma oportunidade de melhorarmos a gestão da cidade e
criarmos oportunidades para os moradores — diz Mauricio Trujillo,
diretor do Conselho Distrital de Bogotá.